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A hipocrisia da Índia relativamente à Internet

NOVA DELI – Na cimeira do G7 realizada no mês passado, a Índia juntou-se a 11 outros signatários, desde o Canadá à Coreia do Sul e à União Europeia, na emissão de um comunicado conjunto que confirma a sua “crença comum nas sociedades abertas, nos valores democráticos e no multilateralismo”. A declaração apregoou o compromisso dos signatários com as regras e normas internacionais relativas, entre outras coisas, à “liberdade de expressão, tanto online como offline”, e identificou os “encerramentos da internet com motivações políticas” como uma ameaça à liberdade e à democracia. Segundo esta definição, a Índia já não pode ser considerada um modelo de valores democráticos.

O potencial da Internet como uma força para o bem é reconhecido, nomeadamente pelos cidadãos indianos. Durante a devastadora segunda vaga da pandemia de COVID-19, quando os serviços públicos falharam, os indianos usaram plataformas de redes sociais como o Twitter e o WhatsApp para reunir recursos.

Os indianos também usaram essas plataformas para organizar e mobilizar apoios aos protestos contra reformas agrárias controversas e contra a discriminatória Lei de Alteração de Cidadania. Mas o Partido Bharatiya Janata (BJP), no poder, considerou isso inaceitável, e o governo do primeiro-ministro Narendra Modi suspendeu repetidamente o acesso online sob o pretexto de “manutenção da segurança pública”.

Com efeito, desde que o BJP chegou ao poder em 2014, já encerrou a internet 521 vezes. Mas como os encerramentos são um instrumento grosseiro, o governo está a tentar implementar um controlo mais consistente sobre a forma como a internet funciona no país, através do Regulamento para as Tecnologias de Informação (Orientações para intermediação e Código de Ética para os meios digitais), de 2021.

Promulgado em Fevereiro sem a adequada consulta pública ou debate parlamentar, o Regulamento concede ao governo indiano amplos poderes para suprimir conteúdos online. Estes incluem forçar as plataformas tecnológicas a removerem publicações ou vídeos considerados difamatórios, incitadores do ódio, enganosos ou que violem a soberania e a integridade nacionais.

As regras também incumbem as empresas de redes sociais com a nomeação de executivos sediados na Índia, que possam ser penalmente responsáveis por eventuais violações. E, talvez o mais controverso, os serviços de mensagens são obrigados a implementar a “rastreabilidade” para todas as mensagens enviadas através dos seus serviços, quebrando dessa forma a encriptação ponto-a-ponto que plataformas como o WhatsApp e o Signal proporcionam aos seus utilizadores.

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Evidentemente, o governo da Índia insiste que está a agir com a melhor das intenções: para controlar o crime e para manter a segurança online das mulheres e das crianças. Com efeito, está a fazer precisamente o contrário. Com o seu assalto à encriptação ponto-a-ponto, está a ameaçar a segurança do povo indiano, nomeadamente dos cidadãos mais vulneráveis.

A encriptação é o mecanismo mais sólido e mais amplamente disponível para garantir a privacidade e a segurança dos utilizadores da internet. A encriptação ponto-a-ponto, que garante que mais ninguém para além do remetente e do destinatário conseguem decifrar e ler os conteúdos, é o padrão de excelência para a segurança online. Se este padrão for comprometido ou desconsiderado, crescem os riscos de exploração criminosa, vigilância ilegal e abuso, ameaçando simultaneamente a segurança pessoal e nacional. A escolha não é apenas entre a privacidade e a segurança. Em vez disso, o governo está a sacrificar ambas.

De forma pouco surpreendente, o novo regulamento tem sido abertamente criticado. A Twitter, cujas instalações na Índia foram alvo de rusgas policiais em Maio, depois de a plataforma ter assinalado os tweets de um responsável governamental como “conteúdos manipulados”, descreveu o regulamento como um “perigoso passar dos limites”.

Pelo seu lado, a WhatsApp apresentou queixa em tribunal contra o governo indiano, argumentando que o requisito de rastreabilidade é incompatível com a encriptação ponto-a-ponto. Como a empresa não consegue prever quais as mensagens que serão sujeitas a uma ordem de rastreio, refere a queixa, terá de identificar na sua plataforma e de forma permanente o originador de cada mensagem.

Em última análise, o regulamento será inconstitucional, afirma a queixa, porque desrespeita a privacidade sem passar no teste dos três critérios da legalidade, necessidade e proporcionalidade, implementado em 2017 por uma decisão do Supremo Tribunal. Outras acções judiciais que desafiam a cláusula da rastreabilidade fazem eco dos mesmos argumentos.

As empresas tecnológicas não estão sós na sua oposição ao regulamento das TI. Três relatores especiais das Nações Unidas (para a promoção e protecção do direito à liberdade de opinião e expressão, para os direitos à liberdade de reunião e associação pacífica, e para o direito à privacidade) instaram o governo indiano a revogar, rever ou reconsiderar aspectos do regulamento. Tal como estão redigidas, defendem os relatores especiais, as regras são inconsistentes com as normas internacionais de direitos humanos consagradas no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, um tratado ratificado pela Índia em 1979.

A carta dos relatores também sublinha que a linguagem ambígua do regulamento deixa margem a abusos. E os especialistas salientaram que, apesar de todos os riscos que o requisito de rastreabilidade coloca à segurança e à privacidade, é pouco provável que seja eficaz.

Sendo a maior democracia do mundo, a Índia é amplamente reconhecida como um dos “decisores digitais” do mundo nos debates sobre normas para o mundo cibernético. Mas as decisões do governo de Modi relativas à Internet contrariam frontalmente a declaração que este assinou no mês passado. A Índia não pode ter as duas coisas ao mesmo tempo.

As opiniões expressas aqui são pessoais e não reflectem as posições da Internet Society.

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