arauz1_PEDRO PARDOAFP via Getty Images_oil ecuador PEDRO PARDO/AFP via Getty Images

O realismo sobre os tratados de investimento

WASHINGTON, DC – Vários países europeus abandonaram o controverso Tratado da Carta de Energia (TCE) no ano passado. França, Espanha, Países Baixos, Alemanha, Polónia, Luxemburgo, Eslovénia e Dinamarca desistiram do TCE ou anunciaram a sua intenção de o fazer, juntando-se à Itália, que saiu em 2016. Ao permitir que investidores estrangeiros em energia processem governos nacionais por perdas causadas por mudanças de política, o TCE impede os países de cumprirem o seu compromisso de concretizar as metas do Acordo de Paris sobre o clima e, efetivamente, neutraliza os seus planos de tributar os lucros inesperados das empresas petrolíferas.

Se, por um lado, as economias avançadas estão a ser intimidadas pelas grandes corporações e a debater-se para implementar reformas urgentemente necessárias, por outro, os países em desenvolvimento estão numa posição muito pior. Atraídos pela, muitas vezes enganosa, promessa de maiores fluxos de entrada de capital, muitos assinaram uma série de tratados de investimento bilaterais e multilaterais. Tal como acontece com o TCE, esses acordos contêm mecanismos de resolução de litígios entre investidores e Estados (ISDS, na sigla em inglês) que permitem que investidores estrangeiros apresentem uma reclamação contra um Estado perante um tribunal internacional privado. A insatisfação com o TCE na Europa poderia ter desencadeado um importante debate sobre como os mecanismos ISDS afetam o futuro do planeta; em vez disso, muitos estados-membros da União Europeia continuam a pressionar os países em desenvolvimento para concluírem tratados de investimento.

Estabelecido no final da Guerra Fria, o TCE foi projetado para incentivar o investimento ocidental no setor de energia dos países do antigo bloco soviético, principalmente na indústria de combustíveis fósseis. Para amenizar as preocupações sobre expropriação, violação de contrato e outros tratamentos discriminatórios, o tratado permite que os investidores apresentem divergências à arbitragem internacional, uma instância supostamente neutra, em vez de tribunais nacionais. Através deste sistema, as empresas podem processar os governos por perdas de investimentos, incluindo lucros futuros, que podem chegar a milhares de milhões de dólares. Desde junho de 2022, pelo menos 150 casos de arbitragem de investimento foram instaurados ao abrigo do TCE.

Mas o TCE é apenas a ponta do iceberg. Aproximadamente 2500 tratados de investimento – a maioria bilateral – permitem que investidores internacionais utilizem mediadores ISDS para resolverem litígios com Estados. As corporações podem processar os Estados por qualquer decisão judicial, legislativa ou regulamentar, inclusive a nível municipal, que possa afetar os seus resultados. Os tratados de investimento fazem com que seja mais difícil para os governos implementarem salvaguardas ambientais, direitos laborais e normas de segurança mais firmes e eficazes. Até mesmo a ameaça de um processo por parte de um investidor pode entravar os governantes.

Nem mesmo a promessa de reforma amenizou a decisão dos principais estados-membros europeus de abandonarem o TCE. A Comissão Europeia disse que um tratado de saída coordenado da UE – um desfecho exigido pelo Parlamento Europeu – parece inevitável. Também se fala da existência de países da UE que concordam entre si em não aplicar a cláusula de caducidade do TCE, que protege qualquer investimento existente durante mais 20 anos após a saída de um Estado (o Parlamento Europeu também votou a favor da anulação da cláusula). Muitos acreditam que a eliminação gradual dos combustíveis fósseis não pode esperar mais duas décadas.

Os países em desenvolvimento poderiam aproveitar ao máximo essa resistência sem precedentes contra o TCE, exigindo uma revisão dos muitos tratados de investimento devastadores dos quais fazem parte. No entanto, enquanto os estados-membros da UE estão a deixar o TCE, um número crescente de países africanos, incluindo Gâmbia, Mali, Burkina Faso, Nigéria, Ruanda, Senegal e Eswatini, estão a aderir.

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Infelizmente, a recusa da Europa em subordinar a tomada de decisões políticas aos interesses corporativos não foi além das fronteiras do bloco. Apesar de anunciar a sua saída do TC, França ainda mantém 19 tratados bilaterais de investimento com países da América Latina e Caraíbas, bem como outros 20 com países africanos. Espanha tem 18 e 11, respetivamente, e os Países Baixos têm 15 e 22. E estes três Estados continuam a pressionar os países em desenvolvimento para assinarem novos tratados de investimento (grande parte das investigações estima que a maioria dos requerentes investidores pertence a economias avançadas, embora nem sempre seja fácil determinar a sua nacionalidade).

O Equador, que possui grandes reservas de petróleo, é um exemplo marcante dessa dinâmica. O país abandonou todos os seus tratados de investimento em maio de 2017, após a Comissão de Auditoria dos Tratados de Proteção dos Investimentos ter passado vários anos a analisar a sua legalidade e o seu impacto. O relatório da comissão encontrou anomalias na ratificação de muitos tratados e no histórico de atrair investimentos estrangeiros. Alguns ainda estão em vigor devido a cláusulas de caducidade, mas já não oferecem proteção a novos investimentos (o Equador não foi tão longe como o Parlamento Europeu em pedir que essas cláusulas fossem abandonadas).

Mas os governos equatorianos subsequentes, sob pressão de corporações transnacionais, demonstraram um interesse renovado em restabelecer os mecanismos ISDS, e a Europa retribuiu. No passado mês de agosto, numa visita oficial ao Equador, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, ao contemplar o crescente interesse das empresas espanholas no país, insistiu que “é importante que possamos concluir um tratado [bilateral de investimento] antes do final do ano”. Em particular, a Repsol, a maior empresa petrolífera de Espanha, tem vários projetos no Equador e interpôs previamente uma ação arbitral contra o país por causa do seu imposto inesperado. Os Países Baixos também pressionaram o Equador para assinar um tratado de investimento, ostensivamente para proteger o seu setor de energia.

Uma compensação recente concedida no âmbito do tratado bilateral de investimento França-Equador ilustra de forma notável a tendência perniciosa desses acordos de atribuir prioridade aos lucros corporativos em detrimento dos esforços dos Estados soberanos para garantir o desenvolvimento sustentável e a prosperidade partilhada. Apesar de registar os seus principais ativos nas Bahamas, um paraíso fiscal, a empresa petrolífera anglo-francesa Perenco usou a cláusula de arbitragem do tratado Equador-França para tentar obter uma compensação por um imposto sobre receitas inesperadas. O tribunal arbitral concedeu 412 milhões de dólares à Perenco por “expropriação indireta” e o Equador concordou em pagar. Esse “pacto comercial” permite que as multinacionais minimizem a responsabilidade tributária e, ao mesmo tempo, maximizem a proteção dos seus investimentos.

Os tratados de investimento continuam a ser um grande obstáculo para combater as alterações climáticas e proteger a dignidade de todas as vidas humanas. A vaga de desistências europeias do TCE é uma oportunidade de ouro para reverter as disposições ISDS de muitos outros tratados de investimento. Mas, primeiro, a Europa tem de reconhecer a sua hipocrisia.

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