2edb430446f86f380e020d27_pa1581c.jpg Paul Lachine

Mesquita ou modernidade?

PARIS – O que é que aconteceu à “Primavera Árabe”? Quando as manifestações eclodiram na Tunísia, no Egipto e na Líbia, que culminaram com o fracasso de três ditaduras velhas e cansativas, ninguém sabia que forças, instituições e procedimentos iriam surgir da exigência dos manifestantes pela democracia. E, no entanto, apesar da natureza sem precedentes e imprevisível dos acontecimentos - ou talvez por causa dela - a esperança manteve-se elevada.

O que aconteceu desde então mostra claramente o que toda a gente sabia (ou deveria saber) o tempo todo: nada sobre a mudança de regime é simples. Nenhum dos três países encontrou ainda uma solução institucional estável que consiga neutralizar as tensões internas, que se intensificam cada vez mais, e responder eficazmente às exigências populares.

Outros países da região, incluindo o Iémen e alguns dos estados do Golfo, também vivenciaram diferentes graus de turbulência. A violência sectária está mais uma vez a consumir o Iraque, enquanto os confrontos entre as facções anti-regime na Síria tornam-se cada vez mais frequentes, com os islamistas a procurarem ganhar vantagem à frente da transição política que ocorreria se o governo caísse. Até mesmo em Marrocos, um rei com poder absoluto como Comandante dos Fiéis foi forçado, por uma intensa indignação pública, a caminhar em direcção a um sistema mais inclusivo em relação ao Islão político.

Da mesma forma, os novos acontecimentos nos dois poderes não árabes da região sugerem que nenhum é imune à instabilidade. Na Turquia, os protestos recentes têm destacado a crescente oposição ao poder arrogante e às políticas sociais divisórias, baseadas na religião, do primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan. No Irão, grande parte da classe média apoiou o mais moderado dos candidatos, aceitável ​para os guardiães islâmicos do país, nas eleições presidenciais de Junho.

Vários factores relacionados sustentam a instabilidade crónica da região. Um deles é o subdesenvolvimento. Enquanto o petróleo fez alguns presidentes e príncipes incrivelmente ricos, o resto da população recebeu poucos benefícios. A fome generaliza-se; na verdade, a pobreza e a desigualdade têm alimentado grande parte da mobilização popular na região.

Mas a política de protesto da região também reflecte a crescente rejeição da ditadura e dos governos arbitrários. Apesar de estes países não terem uma tradição de discordarem abertamente, a globalização tornou claro para todos que o desenvolvimento económico requer uma mudança de regime.

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Por fim, o Islão político é comum a todos os conflitos da região e não deve ser dissociado - como muitas vezes acontece - dos problemas económicos destes países. Simplificando, o Islão - uma das grandes religiões do mundo, praticado por quase um quarto da humanidade - perdeu o seu arranque no desenvolvimento.

Não há formas fáceis de se sair do subdesenvolvimento sem desafiar os tradicionais estilos de vida, costumes e relações sociais. Na verdade, as religiões não resistem bem às pressões da mudança económica.

Para os judeus, dada a ausência de uma pátria, o desenvolvimento ocorreu no meio da diáspora, com a emancipação civil na Europa a dar origem a movimentos reformistas que visavam conciliar a fé e a modernidade. Da mesma forma, o cristianismo, seja católico ou ortodoxo, bloqueou o desenvolvimento económico durante séculos, até os reformistas internos redefinirem as posições teológicas do dinheiro e da banca, a natureza do progresso e a ciência e tecnologia. Não é por acaso que a reforma religiosa na Escandinávia, na Alemanha, na Inglaterra, na Holanda e nos Estados Unidos deu origem ao capitalismo global de hoje.

Esta dinâmica estende-se até mesmo à China, um país oficialmente ateu. O comunismo ortodoxo, um simulacro secular perfeito da religião, tem sido a principal vítima do desenvolvimento desde que a China iniciou as suas reformas de mercado, em 1979.

O Islão também tem os seus reformistas. Veja-se o caso da missão confiada a Rifa'a al-Tahtawi, o grande estudioso egípcio enviado para a Europa por Mohammed Ali, em 1826, para aprender sobre a civilização ocidental e tentar estabelecer um entendimento entre ela e o Islão. Mas em todo o mundo árabe, sem excepção, os reformistas foram presos, mortos ou reduzidos à impotência política.

Na ausência de um análogo para a Revolução Industrial do Ocidente, os muçulmanos (e particularmente os árabes) têm enfrentado várias humilhações e uma colonização parcial ao longo dos últimos dois séculos. O legado resultante da queixa, da vergonha e da raiva faz parte do que sustenta o mal-estar actual da região.

Na verdade, algumas das manifestações de rua não deixam dúvida de que muitas pessoas estão a afastar-se completamente da religião. Isto é tão visível no Egipto e na Tunísia, como o é na Turquia. Mas a dura realidade para o mundo islâmico é que, em tempos de incerteza generalizada, as forças da tradição tendem a falar mais alto e de forma mais clara do que as forças da mudança.

A paz nesta região enorme e estrategicamente vital - e, assim, no mundo - só pode prevalecer se os seus países conseguirem, apesar dos seus tumultos, protegerem-se dos extremos ideológicos e dos excessos políticos. A importância deste assunto deve ser bastante clara para os ocidentais, cuja civilização moderna cresceu da dissidência religiosa que foi inicialmente recebida pela violência da Inquisição e da Contra-Reforma. Se o Islão, em particular no Médio Oriente, estiver numa trajetória semelhante, a instabilidade a longo prazo na região está praticamente assegurada. A compreensão mútua é a única maneira de moderar as consequências.

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