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O acordo do FMI com a Argentina pode ser um divisor de águas

NOVA YORK –  Um novo projeto de acordo entre a Argentina e o Fundo Monetário Internacional evitou a austeridade. Aguardando aprovação do Congresso da Argentina e do conselho do FMI, esse acordo permitirá que a economia argentina cresça enquanto o governo continua seus esforços para diminuir a pobreza e gradualmente reduzir a inflação. Com tantos países enfrentando problemas de dívida devido à pandemia, o FMI precisará adotar mudanças semelhantes em suas políticas em outros lugares.

É notório que o velho modelo de austeridade não funciona. Não só faz com que a economia se contraia e inflija excessivo sofrimento à população, como também não consegue cumprir nem mesmo os limitados objetivos de reduzir os déficits e aumentar a capacidade de um país de pagar seus credores.

Defensores da austeridade reivindicaram sucesso em alguns países. Mas essas eram economias pequenas com a sorte de ter parceiros comerciais que estavam desfrutando de um boom na época em que a austeridade estava sendo implementada. Esses efeitos positivos compensaram os cortes nos gastos públicos, mas essas mesmas economias poderiam ter crescido ainda mais se não tivessem adotado políticas de austeridade ao estilo Herbert Hoover.

A Argentina, por sua vez, demonstrou os méritos de uma estratégia alternativa focada no crescimento. Quando a economia se expande, as receitas fiscais podem aumentar rapidamente.

O anúncio de um novo acordo do FMI com a Argentina suscitou alguns comentários críticos, sugerindo que há algo no sangue dos argentinos que torna seu país não confiável – como se fosse uma nação de caloteiros. A suposição é que a única maneira de lidar com um inadimplente contumaz é ser implacavelmente duro. Caso contrário, governos peronistas de “esquerda” fiscalmente perdulários supostamente deixarão uma bagunça para o próximo governo de centro-direita limpar, com o ciclo se repetindo interminavelmente.

Essa crítica rotineira não poderia estar mais longe da verdade. Quando o mais recente presidente de centro-direita, Mauricio Macri, assumiu o cargo no final de 2015, a dívida pública externa da Argentina era relativamente pequena, de 35% do PIB, devido às políticas de crescimento e reestruturação da dívida dos governos anteriores. Macri então fez uma farra de empréstimos, ganhando elogios de credores de Wall Street felizes em capitalizar as altas taxas de juros que ele havia oferecido. Após alguns anos, no entanto, tudo começou a desmoronar. Em 2019, a dívida pública externa da Argentina subiu para 69% do PIB.

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O FMI fez seu maior empréstimo de todos os tempos ao governo Macri em 2018, sem sequer impor condições para proibir que o dinheiro fosse usado para financiar saídas de capital ou pagar dívidas insustentáveis ​​a credores privados. O que aconteceu a seguir não foi surpresa: fuga de capitais, contração econômica e inflação crescente, que atingiu 53,8% em 2019.

O mesmo padrão ocorreu na década de 1990 sob o presidente Carlos Menem. Queridinho do FMI, Menem foi levado a Washington e apresentado como exemplo de boa governança e sólida formulação de políticas econômicas. Mas após um período de maciços empréstimos do governo tomados no exterior, a Argentina caiu em uma depressão devastadora que durou de 1998 a 2002. Em  2003, o governo peronista de Néstor Kirchner conseguiu uma rápida recuperação. Conseguiu-o através da implementação de uma estratégia de crescimento de base ampla.

Os mercados financeiros muitas vezes ficam obcecados com a inflação, que pode ser um problema para o funcionamento de uma economia de mercado. Obviamente, o presidente argentino Alberto Fernández teria preferido não ter herdado uma economia de alta inflação quando assumiu o cargo em 2019. Mas todo governo deve jogar com as cartas que recebe, e sempre haverá compensações difíceis na formulação de políticas econômicas. Os programas tradicionais do FMI muitas vezes deixaram de lado as preocupações com o custo para as pessoas e a economia, a perda de crescimento e o aumento da pobreza, e adotaram estratégias de austeridade de corte orçamentário.

Com a inflação em 50,9% em 2021, há quem insista que a Argentina precisa de um programa recessivo para controlar os preços. Mas mesmo que a austeridade renovada conseguisse atingir esse objetivo, a cura seria pior do que a doença. Em um país onde 40% da população já vive abaixo da linha da pobreza, nenhum programa que aumente o desemprego o suficiente para reduzir a inflação rapidamente seria sustentável ou justificável.

O novo acordo da Argentina com o FMI é apenas o começo. Mas sempre haverá aqueles que anseiam pelo velho FMI, com suas condicionalidades contracionistas, muitas vezes duras ou pró-cíclicas. Essas políticas seriam um desastre para a Argentina e o mundo. Elas aprofundariam a divisão entre as economias avançadas e os países em desenvolvimento e emergentes, minando ainda mais a credibilidade do FMI, que tem a tarefa de garantir a estabilidade financeira global, em um momento em que medidas para melhorar essa estabilidade são extremamente necessárias.

Durante a implementação do novo programa, a Argentina inevitavelmente sofrerá choques – positivos e negativos. Com o COVID-19 ainda presente e em vista dos conflitos geopolíticos em andamento, o risco de choques negativos é real. Um grande choque adverso implicaria crescimento menor e maiores déficits do que o previsto, exigindo uma recalibração. Nesse caso, a antiga linguagem do FMI – “o país saiu dos trilhos” – precisaria ser descartada. Aqui está um  substituto: “O governo e o FMI continuam trabalhando juntos para garantir que o país responda efetivamente ao choque para que o crescimento compartilhado seja restaurado, porque é somente através desse crescimento que os objetivos acordados podem ser alcançados”.

Antigas ideias são muito resistentes (não importa quantas vezes se prove que estejam erradas), e reconstruir instituições é um processo lento. Felizmente, o novo acordo do FMI permitirá que a Argentina enfrente os desafios que tem diante de si, em vez de amarrar suas mãos.

Tradução de Anna Maria Dalle Luche, Brazil.

https://prosyn.org/VvnVNDJpt