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Como partilhar um rio

JOANESBURGO/BONA – Em 2011, a Etiópia iniciou a construção da Grande Barragem do Renascimento Etíope (GBRE) no Nilo Azul, para proteger os seus recursos aquíferos e produzir energia hidroeléctrica. Mas o projecto tem sido altamente controverso, com o Egipto, situado rio abaixo, a opor-se veementemente ao mesmo. A menos que os dois países cheguem a uma solução negociada, toda a região poderá ser mergulhada no conflito.

Para a Etiópia, a GBRE poderia minorar uma escassez energética crónica, que deixou mais de 55% da população do país sem acesso a electricidade. A barragem também tem um significado emocional, ao prometer a realização de um sonho há muito gravado na imaginação do público.

Mas o Nilo tem significado estratégico para todos os países que o bordejam. O sector agrícola do Egipto depende fortemente das suas águas. A construção da barragem suscita sérias dúvidas para todos os que estão a jusante.

Essa dependência partilhada do Nilo é a razão pela qual, em 1999, dez países criaram a Iniciativa da Bacia do Nilo, para servir de fórum para o debate sobre a gestão e o desenvolvimento sustentáveis dos recursos do rio. A Iniciativa começou depois a desenvolver o Acordo-Quadro de Cooperação (AQC), que delineou os princípios, direitos e obrigações dos países e tentou criar uma Comissão permanente para a Bacia do Rio Nilo que facilitasse a implementação do AQC.

Mas, em 2010, o Egipto e o Sudão rejeitaram o AQC. Um ano mais tarde, a Etiópia começou mesmo assim a construir a GBRE, optando por auto-financiar o projecto de 4800 milhões de dólares. O primeiro enchimento do reservatório foi concluído recentemente, e os restantes 25% do projecto serão concluídos quando chegar a estação seca.

Entretanto, conversações tripartidas, mediadas pela União Africana, continuaram até durante este Verão, mas não geraram quaisquer resultados, devido a dois pontos delicados. O primeiro é a atenuação dos efeitos das secas: o Egipto pretende assegurar, durante os anos de seca, um fluxo muito superior ao que a Etiópia está disposta a conceder. O segundo é a resolução de litígios. Deverá ser incluída, em qualquer tratado, uma cláusula de arbitragem vinculativa?

Mas a desconfiança entre as partes reforçou o impasse, alimentando tensões que poderiam levar à violência. Porém, a experiência noutras paragens demonstra que é possível chegar-se a um melhor resultado.

Na década de 1970, o Brasil e o Paraguai iniciaram um esforço binacional para a construção de uma enorme barragem hidroeléctrica no Rio Paraná, situado na sua fronteira comum. A Barragem de Itaipu, concluída em 1984, produz hoje cerca de 88% da electricidade do Paraguai e mais de 11% do abastecimento do Brasil, tornando-a um líder mundial na capacidade produtiva de energia renovável.

Mas o projecto da Barragem de Itaipu enfrentou resistência considerável da Argentina, um país a jusante que, tal como o Egipto da actualidade, se preocupava com o seu abastecimento de água. Devido às suas objecções, as instituições financeiras internacionais começaram por recusar o financiamento da construção da barragem.

O problema foi resolvido com a celebração do Acuerdo Tripartito entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai, que os três países assinaram em 1979. O acordo estabeleceu as alterações aceitáveis aos níveis da água, além de protecções ambientais e normas para a qualidade da água. Para monitorizar o seu cumprimento, o acordo implementou um mecanismo para que os três países trocassem informações relativas às condições hidrológicas. Além disso, foi criado um enquadramento institucional para a cooperação e gestão de águas transfronteiriças para a Bacia do Paraná.

Os instrumentos e instituições criados no arranque da Barragem de Itaipu continuam a sustentar a resolução de litígios. Actualmente, a seca extrema reduziu gravemente o caudal do Rio Paraná, reduzindo o abastecimento de água à Argentina e dificultando para o Paraguai, um país sem litoral, a navegação fluvial, essencial para a sua indústria exportadora agrícola.

Embora não exista um órgão independente de arbitragem para gerir esta crise, os países afectados negociaram uma solução amigável, baseada nos tratados da década de 1970 e no direito internacional. O conselho binacional que gere a Barragem de Itaipu concordou em libertar do reservatório a quantidade suficiente de água para minorar os efeitos da seca nos países a jusante, sem comprometer a produção de energia. O trabalho das comissões técnicas e o intercâmbio de dados sobre as condições hidrológicas entre instituições de todos os países afectados foram críticos para o êxito das negociações.

Esta experiência proporciona lições valiosas para o Egipto e a Etiópia, nomeadamente quanto ao valor dos tratados e do direito internacional para a resolução definitiva de litígios. De um modo mais geral, demonstra como a institucionalização e a cooperação podem ajudar a desenvolver a confiança e a produzir benefícios partilhados.

O projecto Itaipu contribuiu para a integração económica regional, ao fornecer os recursos para o financiamento de infra-estruturas, como pontes internacionais, aeroportos e auto-estradas, bem como para projectos de desenvolvimento social e ambiental. Da mesma forma, uma vez que a GBRE atingir a sua capacidade máxima, pode contribuir para a criação de um mercado energético regional.

À medida que os efeitos das alterações climáticas se tornam cada vez mais evidentes, o mesmo acontece ao imperativo da utilização dos recursos naturais de uma forma mais eficiente e equitativa, e da transição para fontes de energia renováveis. Se seguirem os passos da Argentina, do Brasil e do Paraguai, os países do Nilo podem conseguir avanços importantes para a consecução desses objectivos, e definir um precedente global robusto na utilização de recursos transfronteiriços que promovam o desenvolvimento sustentável.

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