SEATTLE –Há vinte e cinco anos, a África do Sul realizou as suas primeiras eleições livres após o fim do apartheid. O Congresso Nacional Africano venceu de forma esmagadora e o seu líder, Nelson Mandela, começou a unir novamente o país como seu novo presidente. À medida que a África do Sul pós-apartheid completa as suas sextas eleições democráticas, vale a pena recordar o legado formidável de Mandela.
Em 1994, era eu um jovem jornalista no Financial Times, encarregue de observar Clarence Makwetu, o líder do partido do Congresso Pan-Africano de extrema-esquerda, a emitir o seu voto. Makwetu não tinha interesse na reconciliação. Durante o apartheid, a ala militar do PAC adotou o slogan “um colono, uma bala”, e os seus membros apelaram para que se empurrasse “todos os brancos para o mar”.
Como nunca se realizou nenhuma sondagem confiável de eleitores negros em África do Sul, alguns previram que Makwetu e o seu partido poderiam garantir até um quarto dos votos. Muitos recearam que tal resultado pudesse desencadear uma erupção de violência e, no início, parecia que isso fosse acontecer.
Na manhã em que Makwetu votou, um extremista branco descontente detonou uma bomba no aeroporto de Joanesburgo. Com a guerra na ex-Jugoslávia ainda em andamento e o genocídio de Ruanda nas suas primeiras semanas, a comunicação social internacional apressou-se em fazer a cobertura daquilo que eles esperavam vir a ser outra história brutal: uma iminente guerra civil sul-africana entre extremistas brancos de direita e extremistas negros de esquerda.
É claro que não foi isso que aconteceu. Apenas quatro anos depois de ser libertado da prisão - tendo cumprido 27 anos por conspirar para derrubar o Estado -, Mandela subiu ao poder com mais de 60% dos votos, enquanto Makwetu e o PAC ganharam apenas 1%. Mas isso não significa que o resultado - da votação ou da presidência de Mandela - fosse inevitável.
A história parece ser sempre obra do destino depois de as situações acontecerem. Hoje, é difícil imaginar um mundo sem Mandela a erguer a África do Sul das ruínas do apartheid e a estabelecer as bases para um país unido. Mas a África do Sul, em 1994, era um foco de tensões e divisões, muitas das quais pareciam intransponíveis.
At a time of escalating global turmoil, there is an urgent need for incisive, informed analysis of the issues and questions driving the news – just what PS has always provided.
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De facto, nas semanas que antecederam a votação, o ex-secretário de Estado americano, Henry Kissinger, liderou uma equipa de dignitários mundiais para tentar mediar uma disputa entre muitos dos partidos políticos do país e o Partido da Liberdade Inkatha, controlado pelos zulus, que se tinha comprometido em boicotar as eleições. Kissinger mal tinha saído do seu quarto de hotel em Joanesburgo, quando anunciou que tinha desistido. “A mediação nunca começou”, referiu, “por isso a mediação não falhou”.
Naquele momento, parecia que o fracasso era de facto inevitável e provavelmente teria sido se não fosse Mandela. Dias antes do início da votação, ele ajudou a persuadir Inkatha a abandonar o seu boicote. Isso provou ser vital para a sua vitória, e - como resultado - para o tremendo progresso que a África do Sul fez desde então.
Vinte e cinco anos depois da sua eleição, e quase 101 anos depois do seu nascimento, Mandela é lembrado como um estadista, um libertador, um ícone e um santo secular. Mas antes de ele ser alguma dessas coisas, Mandela era um político, habilidoso em construir coligações e encantar os adversários políticos.
Anos mais tarde, assisti ao filme biográfico de Lincoln, em 2012, de Steven Spielberg, que retrata o 16.º presidente dos Estados Unidos como um animal político. Lincoln tem uma grande e nobre missão - proibir a escravatura na Constituição dos Estados Unidos - mas ele também tem interesse em ser astuto, até mesmo evasivo, para alcançá-la. Quando, no final, passou a lista de todos os que contribuíram para o filme, pensei: “Aquele também era Mandela”.
À semelhança de Lincoln, Mandela acreditava que a história nem sempre vergava as pessoas; às vezes, as pessoas podiam vergar a história. E ele fê-lo e provou estar certo.
Este Mandela - mais do que Mandela, o santo - é o que eu prefiro lembrar. Afinal de contas, se é preciso um santo para resolver um problema aparentemente intratável como o apartheid, então que hipótese é que qualquer um de nós, meros mortais, tem? Mas se um lutador, uma pessoa ativa, um otimista encantador e determinado pode fazer a diferença, então qualquer um tem uma oportunidade de ajudar a criar um mundo melhor.
Este sentimento tem sido uma força motriz na minha carreira. Não muito tempo depois de Mandela ter deixado a presidência em 1999, eu - na altura um jornalista a viver em Washington, DC - escrevi um artigo para o FT, destacando as perceções das Nações Unidas como uma organização esclerótica. Isso chamou a atenção do novo chefe do Programa de Desenvolvimento da ONU, que concordou que a organização precisava de mudar e queria que eu ajudasse.
Quando aceitei o cargo na ONU, não esperava ficar muito tempo; tirei apenas um ano de licença do meu trabalho de jornalismo. Mas, 18 anos depois, ainda estou a trabalhar no desenvolvimento mundial, agora na Fundação Bill & Melinda Gates. Em retrospetiva, está claro que a mudança de carreira foi impulsionada, em grande parte, pelo que Mandela me poderá ter incitado a fazer: “Tal como a escravatura e o apartheid,” ele disse, “a pobreza não é natural. Pode ser superada e erradicada através das ações dos seres humanos”.
Ao longo dos últimos 20 anos, vimos isso acontecer; o índice de pobreza mundial caiu três quartos, graças em grande parte ao rápido desenvolvimento económico da Ásia. Em África, embora o progresso tenha sido desigual, os índices de pobreza em alguns países - como Etiópia, Tanzânia, Gana e Ruanda - caíram dois terços ou mais. As reduções na mortalidade neonatal e infantil, e as melhorias na educação têm sido ainda mais difundidas.
Quanto à África do Sul, ainda está a lutar com o legado do apartheid; a ascensão de uma classe média negra não foi suficiente para compensar disparidades raciais contínuas em matéria de rendimento, educação e saúde. No entanto, em quase todas as medidas, o país está a sair-se melhor do que há 25 anos. A mais recente prova desse progresso são as eleições recém-concluídas: ninguém previu perturbações significativas, independentemente do resultado.
Mandela estava certo: o sofrimento pode ser superado pelas ações dos seres humanos. Até mesmo uma única pessoa pode vergar a história.
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Unlike during his first term, US President Donald Trump no longer seems to care if his policies wreak havoc in financial markets. This time around, Trump seems to be obsessed with his radical approach to institutional deconstruction, which includes targeting the Federal Reserve, the International Monetary Fund, and the World Bank.
explains why the US president’s second administration, unlike his first, is targeting all three.
By launching new trade wars and ordering the creation of a Bitcoin reserve, Donald Trump is assuming that US trade partners will pay any price to maintain access to the American market. But if he is wrong about that, the dominance of the US dollar, and all the advantages it confers, could be lost indefinitely.
doubts the US administration can preserve the greenback’s status while pursuing its trade and crypto policies.
SEATTLE –Há vinte e cinco anos, a África do Sul realizou as suas primeiras eleições livres após o fim do apartheid. O Congresso Nacional Africano venceu de forma esmagadora e o seu líder, Nelson Mandela, começou a unir novamente o país como seu novo presidente. À medida que a África do Sul pós-apartheid completa as suas sextas eleições democráticas, vale a pena recordar o legado formidável de Mandela.
Em 1994, era eu um jovem jornalista no Financial Times, encarregue de observar Clarence Makwetu, o líder do partido do Congresso Pan-Africano de extrema-esquerda, a emitir o seu voto. Makwetu não tinha interesse na reconciliação. Durante o apartheid, a ala militar do PAC adotou o slogan “um colono, uma bala”, e os seus membros apelaram para que se empurrasse “todos os brancos para o mar”.
Como nunca se realizou nenhuma sondagem confiável de eleitores negros em África do Sul, alguns previram que Makwetu e o seu partido poderiam garantir até um quarto dos votos. Muitos recearam que tal resultado pudesse desencadear uma erupção de violência e, no início, parecia que isso fosse acontecer.
Na manhã em que Makwetu votou, um extremista branco descontente detonou uma bomba no aeroporto de Joanesburgo. Com a guerra na ex-Jugoslávia ainda em andamento e o genocídio de Ruanda nas suas primeiras semanas, a comunicação social internacional apressou-se em fazer a cobertura daquilo que eles esperavam vir a ser outra história brutal: uma iminente guerra civil sul-africana entre extremistas brancos de direita e extremistas negros de esquerda.
É claro que não foi isso que aconteceu. Apenas quatro anos depois de ser libertado da prisão - tendo cumprido 27 anos por conspirar para derrubar o Estado -, Mandela subiu ao poder com mais de 60% dos votos, enquanto Makwetu e o PAC ganharam apenas 1%. Mas isso não significa que o resultado - da votação ou da presidência de Mandela - fosse inevitável.
A história parece ser sempre obra do destino depois de as situações acontecerem. Hoje, é difícil imaginar um mundo sem Mandela a erguer a África do Sul das ruínas do apartheid e a estabelecer as bases para um país unido. Mas a África do Sul, em 1994, era um foco de tensões e divisões, muitas das quais pareciam intransponíveis.
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Naquele momento, parecia que o fracasso era de facto inevitável e provavelmente teria sido se não fosse Mandela. Dias antes do início da votação, ele ajudou a persuadir Inkatha a abandonar o seu boicote. Isso provou ser vital para a sua vitória, e - como resultado - para o tremendo progresso que a África do Sul fez desde então.
Vinte e cinco anos depois da sua eleição, e quase 101 anos depois do seu nascimento, Mandela é lembrado como um estadista, um libertador, um ícone e um santo secular. Mas antes de ele ser alguma dessas coisas, Mandela era um político, habilidoso em construir coligações e encantar os adversários políticos.
Anos mais tarde, assisti ao filme biográfico de Lincoln, em 2012, de Steven Spielberg, que retrata o 16.º presidente dos Estados Unidos como um animal político. Lincoln tem uma grande e nobre missão - proibir a escravatura na Constituição dos Estados Unidos - mas ele também tem interesse em ser astuto, até mesmo evasivo, para alcançá-la. Quando, no final, passou a lista de todos os que contribuíram para o filme, pensei: “Aquele também era Mandela”.
À semelhança de Lincoln, Mandela acreditava que a história nem sempre vergava as pessoas; às vezes, as pessoas podiam vergar a história. E ele fê-lo e provou estar certo.
Este Mandela - mais do que Mandela, o santo - é o que eu prefiro lembrar. Afinal de contas, se é preciso um santo para resolver um problema aparentemente intratável como o apartheid, então que hipótese é que qualquer um de nós, meros mortais, tem? Mas se um lutador, uma pessoa ativa, um otimista encantador e determinado pode fazer a diferença, então qualquer um tem uma oportunidade de ajudar a criar um mundo melhor.
Este sentimento tem sido uma força motriz na minha carreira. Não muito tempo depois de Mandela ter deixado a presidência em 1999, eu - na altura um jornalista a viver em Washington, DC - escrevi um artigo para o FT, destacando as perceções das Nações Unidas como uma organização esclerótica. Isso chamou a atenção do novo chefe do Programa de Desenvolvimento da ONU, que concordou que a organização precisava de mudar e queria que eu ajudasse.
Quando aceitei o cargo na ONU, não esperava ficar muito tempo; tirei apenas um ano de licença do meu trabalho de jornalismo. Mas, 18 anos depois, ainda estou a trabalhar no desenvolvimento mundial, agora na Fundação Bill & Melinda Gates. Em retrospetiva, está claro que a mudança de carreira foi impulsionada, em grande parte, pelo que Mandela me poderá ter incitado a fazer: “Tal como a escravatura e o apartheid,” ele disse, “a pobreza não é natural. Pode ser superada e erradicada através das ações dos seres humanos”.
Ao longo dos últimos 20 anos, vimos isso acontecer; o índice de pobreza mundial caiu três quartos, graças em grande parte ao rápido desenvolvimento económico da Ásia. Em África, embora o progresso tenha sido desigual, os índices de pobreza em alguns países - como Etiópia, Tanzânia, Gana e Ruanda - caíram dois terços ou mais. As reduções na mortalidade neonatal e infantil, e as melhorias na educação têm sido ainda mais difundidas.
Quanto à África do Sul, ainda está a lutar com o legado do apartheid; a ascensão de uma classe média negra não foi suficiente para compensar disparidades raciais contínuas em matéria de rendimento, educação e saúde. No entanto, em quase todas as medidas, o país está a sair-se melhor do que há 25 anos. A mais recente prova desse progresso são as eleições recém-concluídas: ninguém previu perturbações significativas, independentemente do resultado.
Mandela estava certo: o sofrimento pode ser superado pelas ações dos seres humanos. Até mesmo uma única pessoa pode vergar a história.