vestager3_OLIVIER MATTHYSPOOLAFP via Getty Images_dsa dma OLIVIER MATTHYS/POOL/AFP via Getty Images

Derrubar os muros das grandes empresas de tecnologia

BRUXELAS – Nos próximos meses, entrarão em vigor novas leis na Europa – pioneiras em todo o mundo – para responsabilizar as grandes empresas de tecnologia perante as sociedades onde operam e fazem negócios. Nesta altura, já todos nós ouvimos falar sobre os perigos que as grandes plataformas online representam para as nossas vidas, para as nossas democracias, para a saúde mental dos nossos filhos e para a concorrência económica. Agora, a União Europeia está a fazer algo a esse respeito.

Para cada uma dessas ameaças, são os mesmos processos básicos que entram em ação. Os algoritmos restringem as conversas a pequenos grupos de “amigos” determinados pelos dados, enquanto os guardiães restringem os mercados online para benefício próprio. Com essas restrições, surge o risco de perdermos de vista um mundo mais amplo, e um mercado mais amplo, ao nosso redor.

Durante décadas, as plataformas tecnológicas tiveram liberdade para fazer o que quisessem e havia muito pouca legislação para lhes traçar limites à medida que assumiam um controlo cada vez maior dos canais de informação do mundo. Mas isso começou a mudar há alguns anos, quando a UE liderou um esforço global para restabelecer algum equilíbrio na economia digital, garantindo justiça e proteções básicas para as pessoas.

A privacidade foi o primeiro elemento de preocupação. Com as principais plataformas a aumentarem as suas receitas para níveis históricos, através de acumulação de dados de utilizadores, ficou claro que o a nosso conceito de privacidade precisava de ser modernizado. A privacidade tornou-se assim um direito inegociável para todos na Europa. Como cidadãos, nós – e somente nós – agora estabelecemos os limites do que partilhamos, ou não, sobre nós mesmos.

Esse entendimento da privacidade como um direito fundamental foi consagrado no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) da UE de 2016. Com o RGPD, a Europa estava a traçar um caminho para que a democracia ficasse a par da tecnologia. Hoje, não há como voltar ao que era antes de a regulamentação aparecer. Desde então, a legislação histórica da UE tem inspirado estruturas semelhantes noutras jurisdições por todo o mundo.

Logo a seguir a essa iniciativa inicial de privacidade de dados, surge o escândalo da Cambridge Analytica, quando ficámos a saber que o Facebook tinha partilhado 87 milhões de perfis de utilizadores com um investigador que forneceu esses dados a uma consultoria política que trabalhava para a campanha presidencial de Donald Trump em 2016. De repente, todos começámos a questionar se as nossas vidas digitais estavam em segurança e até que ponto estávamos a ser vigiados, influenciados e manipulados online.

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Tijolo a tijolo, o muro da pseudoneutralidade atrás do qual as plataformas se escondiam – muitas vezes alegando que são meras “condutas” para repassar informações – foi sendo desmantelado. Foi-se tornando cada vez mais óbvio que as grandes empresas de tecnologia deveriam assumir a responsabilidade pelos conteúdos que elas e os respetivos algoritmos disseminam para a estrutura política. A nossa resposta foi estabelecer essa responsabilidade de forma clara e audível na Lei dos Serviços Digitais (DSA, no acrónimo em inglês) apresentada pela primeira vez em dezembro de 2020.

A DSA é a peça central da legislação da UE que em breve regulamentará o modo como o conteúdo é tratado nas principais plataformas digitais. Exige que as plataformas retirem todo o conteúdo ilegal, além de garantirem que a liberdade de expressão dos seus utilizadores permanece intacta. Também aborda o modo como as plataformas usam algoritmos para determinar o que conseguimos, ou não, visualizar. Estamos atualmente no processo de designar quais são as grandes plataformas e mecanismos de pesquisa que estarão sujeitos a essas disposições da DSA antes de entrarem em vigor no próximo outono.

A última grande questão que a nova legislação digital da UE abordará é a falta de concorrência saudável no setor da tecnologia. Ao longo dos últimos anos, os reguladores abriram processos importantes contra grandes plataformas online, alguns dos quais aumentaram a consciencialização pública sobre o poder de mercado indevido das plataformas. Mas, à medida que os mercados digitais se foram tornando mais complexos, fomos precisando de novas ferramentas sistémicas para complementar os habituais instrumentos antitrust.

A Lei dos Mercados Digitais (DMA, no acrónimo em inglês) foi elaborada para satisfazer essa necessidade. Ela apresenta uma lista de “prós e contras” com o objetivo de impedir que as chamadas plataformas que atuam como guardiães de acesso abusem da sua posição nos mercados digitais e permitir algum espaço para os novos intervenientes competirem com os já estabelecidos pelos seus méritos. Da mesma forma que a DSA articulará oficialmente as responsabilidades das plataformas em relação aos seus utilizadores, também a DMA estabelecerá as suas responsabilidades em relação aos outros participantes do mercado – geralmente com menos poder. O resultado será um mercado tecnológico mais vibrante, mais inovador e mais justo.

Aprovámos essa legislação em tempo recorde. Ao longo do processo, garantimos que o nosso trabalho fosse guiado por valores e não pela tecnologia subjacente. Isso é importante porque, embora as tecnologias estejam sempre a mudar, os valores não.

Temos orgulho de que a Europa se tenha tornado o berço da regulamentação tecnológica a nível mundial. Foi gratificante ver leis semelhantes a serem elaboradas em países que partilham os nossos valores democráticos e humanistas, e continuamos desejosos para coordenar os nossos próprios esforços regulamentares e normativos com outras partes interessadas. O Conselho de Comércio e Tecnologia UE-EUA, lançado em 2021, foi um dos primeiros exemplos de como podemos aprofundar a cooperação internacional para garantir que as tecnologias funcionam para todos. Já estabelecemos parcerias semelhantes com a Índia, Japão, Singapura e Coreia do Sul.

Para que a democracia prospere, ela precisa de espaços abertos onde as pessoas possam conversar, discordar, contradizer-se e encontrar soluções comuns. Antigamente tínhamos praças públicas, câmaras eleitas, universidades e cafés. Quando a Internet chegou, ela prometia expandir esses fóruns a nível mundial. Mas a ascensão de grandes plataformas atrapalhou os planos e fragmentou as nossas conversas numa constelação de espaços opacos e cercados de muros, representando uma ameaça à nossa democracia.

Cabe agora aos cidadãos de todo o mundo a tarefa de derrubar esses muros.

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