NEW HAVEN – O crime de genocídio implica uma tentativa comprovada de destruir, “integral ou parcialmente”, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso – de apagar todos os resquícios deste grupo, cultural e fisicamente. Tal objetivo é perseguido por meio de métodos que incluem assassinato em massa, estupro, sequestro e aborto involuntário ou esterilização. Ao passo que as crianças podem ser reeducadas para adotar uma identidade inteiramente nova, sua antiga cultura terá sido apagada de forma sistemática dos livros e de outras mídias, sendo a meta negar que seus ancestrais alguma vez tenham existido.
Quando pensamos em genocídio, nós, é claro, lamentamos pelas vítimas. Para além da inenarrável violência física, o apagamento de identidades – a transformação de povos inteiros em mitos – é algo profundamente trágico. Mas este fenômeno só pode ser inteiramente compreendido se olharmos para ele também pela perspectiva dos perpetradores. O genocídio desempenhou um papel instrumental na história nacional de vários países. E às vezes é o resultado de uma decisão consciente e determinada de um povo no sentido de se identificar – de definir a própria essência de seu pertencimento nacional – em função da eliminação de outro grupo.
Quero erguer um espelho empático diante de alguns dos piores perpetradores de genocídio. Quero falar sobre os duradouros males infligidos à humanidade – à noção de comunidade e de identidade grupal – daqueles que cometem genocídio especificamente como expressão de seu próprio pertencimento nacional. Quero focar no status especial de tais legados.
Nascidos no sangue
No século 19 e no início do século 20, a Alemanha era um dos centros mundiais mais reverenciados em termos de cultura e civilização. Havia produzido alguns dos maiores pensadores daquilo que significa ser humano: Kant, Goethe, Hegel, Schelling, Einstein, para nomear apenas alguns. Muitas foram as grandes mentes deste país de porte médio que nos legaram visões de um mundo melhor.
Meus avós e meu pai eram alemães. Amavam apaixonadamente sua pátria e sentiam um enorme orgulho da grandeza dessa. Mas então foram privados de sua cidadania; foram expulsos pelo crime de serem judeus. Alguns alemães decidiram que a identidade nacional alemã só podia ser compreendida se separada de e em contraste com a identidade do meu povo, os judeus. Com a ascensão de Adolf Hitler, a Alemanha concluiu que matar os judeus era algo constitutivo da identidade alemã.
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No meu próprio país, os Estados Unidos, o genocídio foi cometido contra povos indígenas, e este fato manchará para sempre o legado americano, não importa o afinco com que apoiadores da direita tentem negar ou embranquecer a história. Mas poucos países tomam a decisão consciente de basear sua identidade nacional na participação ativa em um genocídio. Um país que toma esse caminho garante para si um lugar permanente nos anais do horror. A Alemanha não foi o primeiro.
Os Estados Confederados da América, por exemplo, basearam sua identidade nacional na prática da escravidão. No infame discurso que ficou conhecido como “Cornerstone Speech” [discurso dos pilares], Alexander Stephens, o vice-presidente confederado, declarou que “as fundações do novo governo estão colocadas; seus pilares descansam sobre a grandiosa verdade de que o negro não é igual ao homem branco; de que a escravidão – a subordinação à raça superior – é sua condição natural e normal. Nosso novo governo é o primeiro, na história do mundo, a ter por base esta grandiosa verdade física, filosófica e moral”.
Stephens deixou claro que a natureza essencial de um confederado é determinada pelo apoio entusiasta da escravidão, não como um mal necessário, mas como um bem positivo por si só. A identidade confederada é, portanto, essencialmente vergonhosa, o que ajuda a explicar por que tão poucos se identificam como confederados hoje. A vergonha de sua natureza essencial a eliminou como um posicionamento político viável.
É diferente no caso da Alemanha. Quase nenhum alemão hoje deseja viver como um ariano, pois isso significaria viver como um confederado. Mas alemães ainda vivem como alemães, e por conseguinte conservaram o legado de ancestrais que chegaram a expressar a identidade alemã pela ação genocida. Ao continuar vivendo como alemães, com tudo o que isso implica, eles carregam um fardo imenso. Caso deponham o fardo ou se recusem a continuar vivendo com ele, os alemães vão justificar a profunda suspeição histórica por seu país.
A propaganda nazista convenceu alemães de que ser alemão significava erradicar os judeus da face da terra. Assim, os alemães adotaram um conceito de identidade alemã que estava inextricavelmente entrelaçado com os judeus, que eram definidos como um inimigo mortal. Os alemães de hoje têm plena consciência de que sua identidade nacional foi irrevogavelmente alterada por uma decisão histórica de repercussão mundial tomada por seus ancestrais.
Mesmo após várias décadas decorridas dos crimes nazistas, muitos alemães sentem alguma vergonha por serem alemães. Quando me encontram, alemães podem sentir constrangimento e muitas vezes fingem não se importar ou nem sequer perceber que seus avós definiam a própria germanidade como um ódio assassino por meus avós. A Alemanha é e sempre será definida por essa consciente decisão anterior de se identificar explícita e orgulhosamente como um povo que erradicou a judeidade europeia. A história e a moral exigem esta eterna rememoração.
Racionalizando o irracional
O que pode levar um povo a ligar sua identidade nacional ao genocídio explícito de outro povo? Por definição, a retórica genocida escolhe um grupo social específico e justifica sua erradicação. Um “grupo social antagonístico” é uma hoste cuja autodefinição envolve uma resposta coletiva e fortemente negativa a outro grupo. O discurso genocida cria o tipo mais extremo de grupo social ideológico antagonístico, nutrindo esta sintonia afetiva negativa de um jeito muito específico. Ao propor narrativas falsas sobre a história, define a essência do grupo-alvo como sendo uma ameaça existencial. Um “grupo social ideologicamente antagonístico e genocida” é, portanto, aquele cuja identidade se baseia na ideia de que sua própria existência corre perigo em função de outro grupo.
Justificar de forma entusiasta o genocídio puro e simples é um processo complicado, e estes conceitos altamente abstratos são centrais para entendê-lo. Mas exemplos podem dar concretude ao abstrato. No dia 3 de abril de 2022, a agência de notícias oficial russa RIA Novosti publicou um artigo intitulado “O que a Rússia deveria fazer com a Ucrânia?”. O historiador Timothy Snyder habilmente descreveu o texto como “Manual russo do genocídio”, observando que trata-se de “um dos documentos mais abertamente genocidas que eu jamais vi”. Sendo ele um proeminente historiador de assassinatos em massa, a afirmação de Snyder tem seu peso. Indica que estamos lidando com um dos exemplos mais explícitos de discursos genocidas jamais escritos.
Desde o início o presidente russo Vladimir Putin justificou sua guerra contra a Ucrânia como uma campanha de “desnazificação”. É com detalhes perturbadores que o manual chama a atenção para esta justificativa. Depois de descrever a Ucrânia como “o inimigo da Rússia e um instrumento usado pelo Ocidente para destruir a Rússia”, o documento apresenta uma elaborada argumentação a fim de sustentar essa afirmação.
É dito aos leitores que o Ocidente abandonou seus tradicionais valores europeus em prol do “totalitarismo ocidental, dos programas impostos de degradação e desintegração civilizacional, dos mecanismos de sujeição utilizados pela superpotência Ocidente e pelos Estados Unidos”. Vista assim, a Rússia é “a última autoridade a proteger e preservar os valores da Europa histórica (o Velho Mundo) que merecem ser preservados e que o Ocidente, em última análise, abandonou, derrotando a si mesmo”.
Em um discurso de 1935, “Comunismo desmascarado”, o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels descreve a ameaça do bolchevismo em termos similares, só que com os judeus como alvo. “Como últimas consequências”, ele alertava, “[o bolchevismo] significa a destruição de todas as realizações comerciais, sociais, políticas e culturais da Europa ocidental, em prol de um seleto grupo internacional desenraizado e nômade que encontrou expressão no judaísmo.” Da mesma forma que Goebbels retratava os nazistas como os protetores dos valores tradicionais do Ocidente contra uma ideologia cosmopolita e decadente, assim também a liderança russa promove sua visão de um Russkiy Mir [mundo russo] atemporal e indestrutível.
A nova identidade russa
“O que a Rússia deveria fazer com a Ucrânia?” oferece uma litania pseudo-histórica sobre os graves males que a Rússia teria sofrido nas mãos do Ocidente. “A Rússia fez todo o possível para poupar o Ocidente”, proclama, “mas o Ocidente decidiu se vingar da Rússia pela ajuda por ela fornecida de forma altruísta.” Segundo essa narrativa, a Ucrânia é o instrumento principal da traição do Ocidente, e a identificação do país como uma nação independente reflete a ascendência do “ucronazismo”.
Isto, nos é dito, seria uma versão piorada do nazismo: “o ucronazismo representa uma ameaça muito maior ao mundo e à Rússia do que a versão hitleriana do nazismo alemão”. A identidade ucraniana é um “construto antirrusso que não tem qualquer substância civilizacional própria”. Sua característica principal – a natureza essencial da nação ucraniana – é justamente seu antagonismo à Rússia. Portanto, “diferentemente, por exemplo, da Geórgia e dos Países Bálticos, a história provou ser impossível a Ucrânia existir como um Estado-nação, e qualquer tentativa de ‘construir’ tal Estado-nação naturalmente conduz ao nazismo”.
O documento então descreve todas as práticas que constituem a “desnazificação” da Ucrânia. Elas incluem “investigações em massa” para revelar pessoas responsáveis pelo “espalhamento da ideologia nazista” (soberania ucraniana) e “apoio ao regime nazista” (o governo ucraniano devidamente eleito e suas autoridades designadas). As punições para tais transgressões incluem trabalho forçado, encarceramento e morte. A desnazificação também requer “o confisco de materiais educativos e a proibição de programas educacionais de todos os níveis que contenham orientações de cunho ideológico nazista” (qualquer coisa que mencione a identidade ucraniana).
Ao focar no papel histórico da Rússia diante do Ocidente, o documento oferece uma nova conceitualização da identidade russa. Em específico, define os russos como um grupo social ideologicamente antagonístico e genocida. Ser russo é estar comprometido com a total aniquilação da Ucrânia e do povo ucraniano. A “desnazificação” da Ucrânia é a expressão mais pura da identidade russa. De acordo tal essa lógica, a identidade russa é mais bem exemplificada em atos brutais e violentos de vingança.
Para justificar as ações da Rússia na Ucrânia, é necessário mudar o que significa ser russo, inscrevendo o genocídio na identidade nacional. Ser russo é deleitar-se com a erradicação da Ucrânia. O custo desta mudança será arcado por todos aqueles que se identificam como russos, para sempre.
Um legado horripilante
Como meu pai, eu amo minha pátria ancestral, a Alemanha, que recentemente restabeleceu a cidadania alemã para mim e meus filhos. Amo sua filosofia, sua literatura e seu papel contemporâneo como uma defensora da paz no mundo. Mesmo assim, o primeiro pensamento que me ocorre ao conhecer outro alemão é que seus avós muito provavelmente teriam apoiado com entusiasmo que eu e minha família fôssemos assassinados. Meu primeiro pensamento é que a Alemanha escolheu de forma consciente se tornar um grupo social ideologicamente antagonístico e genocida, escolheu se definir como o povo que enfim erradicaria os judeus.
Bem, não lograram êxito. Mas conseguiram assassinar oito dos meus tios-avôs e tias-avós e todos os seus filhos. Mataram com gás minha bisavó em um campo de concentração e espancaram meu pai, então com seis anos, até transformá-lo em uma polpa sanguinolenta nas ruas de Berlim. Os avós e bisavós dos meus compatriotas alemães decidiram que é isso o que um alemão faz.
Sei que os alemães de hoje querem esquecer essa história – deixar o passado no passado. Os alemães preservaram a germanidade ao mesmo tempo em que derrubaram valentemente o conceito de germanidade de seus avós. Mas ainda há medo e vergonha em seus olhos sempre que tentam desviar o curso da conversa do legado sombrio de seu país. Sempre haverá, porque o genocídio não pode ser e não será esquecido – jamais.
Se o genocídio russo na Ucrânia prosseguir e se a reconceitualização do que é ser russo for levada a cabo, afirmações sobre a identidade russa para sempre evocarão não Púchkin ou Tolstói, mas o extermínio arrebatado de todo um povo. As mortes e as atrocidades que já vimos em Bucha e em outros locais se tornarão a expressão máxima da identidade dos russos. Eis a escolha – uma identidade ligada a um legado horripilante – que os russos de hoje estão fazendo para seus descendentes.
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Although Americans – and the world – have been spared the kind of agonizing uncertainty that followed the 2020 election, a different kind of uncertainty has set in. While few doubt that Donald Trump's comeback will have far-reaching implications, most observers are only beginning to come to grips with what those could be.
consider what the outcome of the 2024 US presidential election will mean for America and the world.
Anders Åslund
considers what the US presidential election will mean for Ukraine, says that only a humiliating loss in the war could threaten Vladimir Putin’s position, urges the EU to take additional steps to ensure a rapid and successful Ukrainian accession, and more.
From the economy to foreign policy to democratic institutions, the two US presidential candidates, Kamala Harris and Donald Trump, promise to pursue radically different agendas, reflecting sharply diverging visions for the United States and the world. Why is the race so nail-bitingly close, and how might the outcome change America?
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NEW HAVEN – O crime de genocídio implica uma tentativa comprovada de destruir, “integral ou parcialmente”, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso – de apagar todos os resquícios deste grupo, cultural e fisicamente. Tal objetivo é perseguido por meio de métodos que incluem assassinato em massa, estupro, sequestro e aborto involuntário ou esterilização. Ao passo que as crianças podem ser reeducadas para adotar uma identidade inteiramente nova, sua antiga cultura terá sido apagada de forma sistemática dos livros e de outras mídias, sendo a meta negar que seus ancestrais alguma vez tenham existido.
Quando pensamos em genocídio, nós, é claro, lamentamos pelas vítimas. Para além da inenarrável violência física, o apagamento de identidades – a transformação de povos inteiros em mitos – é algo profundamente trágico. Mas este fenômeno só pode ser inteiramente compreendido se olharmos para ele também pela perspectiva dos perpetradores. O genocídio desempenhou um papel instrumental na história nacional de vários países. E às vezes é o resultado de uma decisão consciente e determinada de um povo no sentido de se identificar – de definir a própria essência de seu pertencimento nacional – em função da eliminação de outro grupo.
Quero erguer um espelho empático diante de alguns dos piores perpetradores de genocídio. Quero falar sobre os duradouros males infligidos à humanidade – à noção de comunidade e de identidade grupal – daqueles que cometem genocídio especificamente como expressão de seu próprio pertencimento nacional. Quero focar no status especial de tais legados.
Nascidos no sangue
No século 19 e no início do século 20, a Alemanha era um dos centros mundiais mais reverenciados em termos de cultura e civilização. Havia produzido alguns dos maiores pensadores daquilo que significa ser humano: Kant, Goethe, Hegel, Schelling, Einstein, para nomear apenas alguns. Muitas foram as grandes mentes deste país de porte médio que nos legaram visões de um mundo melhor.
Meus avós e meu pai eram alemães. Amavam apaixonadamente sua pátria e sentiam um enorme orgulho da grandeza dessa. Mas então foram privados de sua cidadania; foram expulsos pelo crime de serem judeus. Alguns alemães decidiram que a identidade nacional alemã só podia ser compreendida se separada de e em contraste com a identidade do meu povo, os judeus. Com a ascensão de Adolf Hitler, a Alemanha concluiu que matar os judeus era algo constitutivo da identidade alemã.
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No meu próprio país, os Estados Unidos, o genocídio foi cometido contra povos indígenas, e este fato manchará para sempre o legado americano, não importa o afinco com que apoiadores da direita tentem negar ou embranquecer a história. Mas poucos países tomam a decisão consciente de basear sua identidade nacional na participação ativa em um genocídio. Um país que toma esse caminho garante para si um lugar permanente nos anais do horror. A Alemanha não foi o primeiro.
Os Estados Confederados da América, por exemplo, basearam sua identidade nacional na prática da escravidão. No infame discurso que ficou conhecido como “Cornerstone Speech” [discurso dos pilares], Alexander Stephens, o vice-presidente confederado, declarou que “as fundações do novo governo estão colocadas; seus pilares descansam sobre a grandiosa verdade de que o negro não é igual ao homem branco; de que a escravidão – a subordinação à raça superior – é sua condição natural e normal. Nosso novo governo é o primeiro, na história do mundo, a ter por base esta grandiosa verdade física, filosófica e moral”.
Stephens deixou claro que a natureza essencial de um confederado é determinada pelo apoio entusiasta da escravidão, não como um mal necessário, mas como um bem positivo por si só. A identidade confederada é, portanto, essencialmente vergonhosa, o que ajuda a explicar por que tão poucos se identificam como confederados hoje. A vergonha de sua natureza essencial a eliminou como um posicionamento político viável.
É diferente no caso da Alemanha. Quase nenhum alemão hoje deseja viver como um ariano, pois isso significaria viver como um confederado. Mas alemães ainda vivem como alemães, e por conseguinte conservaram o legado de ancestrais que chegaram a expressar a identidade alemã pela ação genocida. Ao continuar vivendo como alemães, com tudo o que isso implica, eles carregam um fardo imenso. Caso deponham o fardo ou se recusem a continuar vivendo com ele, os alemães vão justificar a profunda suspeição histórica por seu país.
A propaganda nazista convenceu alemães de que ser alemão significava erradicar os judeus da face da terra. Assim, os alemães adotaram um conceito de identidade alemã que estava inextricavelmente entrelaçado com os judeus, que eram definidos como um inimigo mortal. Os alemães de hoje têm plena consciência de que sua identidade nacional foi irrevogavelmente alterada por uma decisão histórica de repercussão mundial tomada por seus ancestrais.
Mesmo após várias décadas decorridas dos crimes nazistas, muitos alemães sentem alguma vergonha por serem alemães. Quando me encontram, alemães podem sentir constrangimento e muitas vezes fingem não se importar ou nem sequer perceber que seus avós definiam a própria germanidade como um ódio assassino por meus avós. A Alemanha é e sempre será definida por essa consciente decisão anterior de se identificar explícita e orgulhosamente como um povo que erradicou a judeidade europeia. A história e a moral exigem esta eterna rememoração.
Racionalizando o irracional
O que pode levar um povo a ligar sua identidade nacional ao genocídio explícito de outro povo? Por definição, a retórica genocida escolhe um grupo social específico e justifica sua erradicação. Um “grupo social antagonístico” é uma hoste cuja autodefinição envolve uma resposta coletiva e fortemente negativa a outro grupo. O discurso genocida cria o tipo mais extremo de grupo social ideológico antagonístico, nutrindo esta sintonia afetiva negativa de um jeito muito específico. Ao propor narrativas falsas sobre a história, define a essência do grupo-alvo como sendo uma ameaça existencial. Um “grupo social ideologicamente antagonístico e genocida” é, portanto, aquele cuja identidade se baseia na ideia de que sua própria existência corre perigo em função de outro grupo.
Justificar de forma entusiasta o genocídio puro e simples é um processo complicado, e estes conceitos altamente abstratos são centrais para entendê-lo. Mas exemplos podem dar concretude ao abstrato. No dia 3 de abril de 2022, a agência de notícias oficial russa RIA Novosti publicou um artigo intitulado “O que a Rússia deveria fazer com a Ucrânia?”. O historiador Timothy Snyder habilmente descreveu o texto como “Manual russo do genocídio”, observando que trata-se de “um dos documentos mais abertamente genocidas que eu jamais vi”. Sendo ele um proeminente historiador de assassinatos em massa, a afirmação de Snyder tem seu peso. Indica que estamos lidando com um dos exemplos mais explícitos de discursos genocidas jamais escritos.
Desde o início o presidente russo Vladimir Putin justificou sua guerra contra a Ucrânia como uma campanha de “desnazificação”. É com detalhes perturbadores que o manual chama a atenção para esta justificativa. Depois de descrever a Ucrânia como “o inimigo da Rússia e um instrumento usado pelo Ocidente para destruir a Rússia”, o documento apresenta uma elaborada argumentação a fim de sustentar essa afirmação.
É dito aos leitores que o Ocidente abandonou seus tradicionais valores europeus em prol do “totalitarismo ocidental, dos programas impostos de degradação e desintegração civilizacional, dos mecanismos de sujeição utilizados pela superpotência Ocidente e pelos Estados Unidos”. Vista assim, a Rússia é “a última autoridade a proteger e preservar os valores da Europa histórica (o Velho Mundo) que merecem ser preservados e que o Ocidente, em última análise, abandonou, derrotando a si mesmo”.
Em um discurso de 1935, “Comunismo desmascarado”, o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels descreve a ameaça do bolchevismo em termos similares, só que com os judeus como alvo. “Como últimas consequências”, ele alertava, “[o bolchevismo] significa a destruição de todas as realizações comerciais, sociais, políticas e culturais da Europa ocidental, em prol de um seleto grupo internacional desenraizado e nômade que encontrou expressão no judaísmo.” Da mesma forma que Goebbels retratava os nazistas como os protetores dos valores tradicionais do Ocidente contra uma ideologia cosmopolita e decadente, assim também a liderança russa promove sua visão de um Russkiy Mir [mundo russo] atemporal e indestrutível.
A nova identidade russa
“O que a Rússia deveria fazer com a Ucrânia?” oferece uma litania pseudo-histórica sobre os graves males que a Rússia teria sofrido nas mãos do Ocidente. “A Rússia fez todo o possível para poupar o Ocidente”, proclama, “mas o Ocidente decidiu se vingar da Rússia pela ajuda por ela fornecida de forma altruísta.” Segundo essa narrativa, a Ucrânia é o instrumento principal da traição do Ocidente, e a identificação do país como uma nação independente reflete a ascendência do “ucronazismo”.
Isto, nos é dito, seria uma versão piorada do nazismo: “o ucronazismo representa uma ameaça muito maior ao mundo e à Rússia do que a versão hitleriana do nazismo alemão”. A identidade ucraniana é um “construto antirrusso que não tem qualquer substância civilizacional própria”. Sua característica principal – a natureza essencial da nação ucraniana – é justamente seu antagonismo à Rússia. Portanto, “diferentemente, por exemplo, da Geórgia e dos Países Bálticos, a história provou ser impossível a Ucrânia existir como um Estado-nação, e qualquer tentativa de ‘construir’ tal Estado-nação naturalmente conduz ao nazismo”.
O documento então descreve todas as práticas que constituem a “desnazificação” da Ucrânia. Elas incluem “investigações em massa” para revelar pessoas responsáveis pelo “espalhamento da ideologia nazista” (soberania ucraniana) e “apoio ao regime nazista” (o governo ucraniano devidamente eleito e suas autoridades designadas). As punições para tais transgressões incluem trabalho forçado, encarceramento e morte. A desnazificação também requer “o confisco de materiais educativos e a proibição de programas educacionais de todos os níveis que contenham orientações de cunho ideológico nazista” (qualquer coisa que mencione a identidade ucraniana).
Ao focar no papel histórico da Rússia diante do Ocidente, o documento oferece uma nova conceitualização da identidade russa. Em específico, define os russos como um grupo social ideologicamente antagonístico e genocida. Ser russo é estar comprometido com a total aniquilação da Ucrânia e do povo ucraniano. A “desnazificação” da Ucrânia é a expressão mais pura da identidade russa. De acordo tal essa lógica, a identidade russa é mais bem exemplificada em atos brutais e violentos de vingança.
Para justificar as ações da Rússia na Ucrânia, é necessário mudar o que significa ser russo, inscrevendo o genocídio na identidade nacional. Ser russo é deleitar-se com a erradicação da Ucrânia. O custo desta mudança será arcado por todos aqueles que se identificam como russos, para sempre.
Um legado horripilante
Como meu pai, eu amo minha pátria ancestral, a Alemanha, que recentemente restabeleceu a cidadania alemã para mim e meus filhos. Amo sua filosofia, sua literatura e seu papel contemporâneo como uma defensora da paz no mundo. Mesmo assim, o primeiro pensamento que me ocorre ao conhecer outro alemão é que seus avós muito provavelmente teriam apoiado com entusiasmo que eu e minha família fôssemos assassinados. Meu primeiro pensamento é que a Alemanha escolheu de forma consciente se tornar um grupo social ideologicamente antagonístico e genocida, escolheu se definir como o povo que enfim erradicaria os judeus.
Bem, não lograram êxito. Mas conseguiram assassinar oito dos meus tios-avôs e tias-avós e todos os seus filhos. Mataram com gás minha bisavó em um campo de concentração e espancaram meu pai, então com seis anos, até transformá-lo em uma polpa sanguinolenta nas ruas de Berlim. Os avós e bisavós dos meus compatriotas alemães decidiram que é isso o que um alemão faz.
Sei que os alemães de hoje querem esquecer essa história – deixar o passado no passado. Os alemães preservaram a germanidade ao mesmo tempo em que derrubaram valentemente o conceito de germanidade de seus avós. Mas ainda há medo e vergonha em seus olhos sempre que tentam desviar o curso da conversa do legado sombrio de seu país. Sempre haverá, porque o genocídio não pode ser e não será esquecido – jamais.
Se o genocídio russo na Ucrânia prosseguir e se a reconceitualização do que é ser russo for levada a cabo, afirmações sobre a identidade russa para sempre evocarão não Púchkin ou Tolstói, mas o extermínio arrebatado de todo um povo. As mortes e as atrocidades que já vimos em Bucha e em outros locais se tornarão a expressão máxima da identidade dos russos. Eis a escolha – uma identidade ligada a um legado horripilante – que os russos de hoje estão fazendo para seus descendentes.
Tradução de Caroline Chang