hausmann114_Tom WilliamsCQ-Roll Call, Inc via Getty Images_fauci Tom Williams/CQ-Roll Call, Inc via Getty Images

De Oppenheimer a Fauci

CAMBRIDGE – O enredo de Oppenheimer, o filme surpresa de grande sucesso deste verão, lembra um filme de Star Wars. Um império do mal planeja aproveitar uma força obscura para subjugar a humanidade. Felizmente, as forças do bem dominam a tecnologia antes do inimigo, garantindo a vitória. Mas o esforço é extremamente dispendioso e a mobilização dos recursos necessários exige investimentos maciços e capacidade organizacional. Em outras palavras, requer atuação política.

A representação do diretor Christopher Nolan do Projeto Manhattan durante a Segunda Guerra Mundial captura um momento histórico único em que cientistas, legisladores e políticos estavam alinhados na busca por um objetivo comum. Albert Einstein informou o então presidente dos EUA, Franklin Delano Roosevelt, que a Alemanha nazista estava trabalhando em uma nova e poderosa arma nuclear. Roosevelt, em resposta, recrutou  Robert Oppenheimer para liderar uma equipe de cientistas altamente talentosos, muitos dos quais eram refugiados europeus que fugiam de regimes fascistas, e nomeou o tenente-general Leslie Groves para chefiar o esforço militar de apoio.

Apesar de suas origens e valores diferentes, Oppenheimer e seus cientistas cooperaram com Groves e suas tropas para alcançar o objetivo comum, superando até as expectativas mais optimistas. Ao desenvolverem a bomba antes dos nazis, desempenharam um papel fundamental para garantir a vitória dos Aliados.

Mas a aliança entre a comunidade científica e o governo dos EUA rapidamente se transformou em azedume, à medida que os cientistas se debatiam com questões morais levantadas pelo seu trabalho, especialmente após os bombardeamentos atômicos de Hiroshima e Nagasaki. Um cientista, Klaus Fuchs, forneceu à União Soviética informações altamente confidenciais sobre o Projeto Manhattan, e Oppenheimer se opôs ao desenvolvimento da bomba de hidrogênio. A confiabilidade de Oppenheimer foi posteriormente posta em causa, levando os políticos a  revogarem sua autorização de segurança e retirá-lo do programa nuclear.

O filme, particularmente o seu desfecho, poderia ser interpretado como uma alegoria da tumultuada relação entre ciência e política. No início de 2020, os cientistas informaram-nos que uma pandemia global estava em curso e, num esforço extraordinário, desenvolveram uma vacina eficaz em tempo recorde. Por outro lado, os alertas dos cientistas sobre a ameaça do aquecimento global, e a sua explicação sobre o que precisa ser feito para mitigar seus efeitos mais devastadores, passaram despercebidos durante décadas.

Há uma estranha semelhança entre Oppenheimer e Anthony Fauci, o ex-diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas que ajudou a liderar a resposta do governo dos EUA à COVID-19. Fauci tornou-se objeto de numerosas teorias de conspiração e ataques por parte de políticos republicanos e especialistas conservadores – os mesmos políticos e especialistas que afirmam que as alterações climáticas são uma farsa.

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É certo que este problema não é novo nem se limita aos Estados Unidos. O ditador soviético Joseph Stalin desafiou o establishment científico e apoioua falsa teoria de Trofim Lysenko de que as características adquiridas poderiam ser herdadas, devastando a agricultura soviética e deixando milhões de pessoas famintas. Na China, a Revolução Cultural de Mao Tse Tung teve como alvo professores universitários e especialistas, rotulando-os de “inimigos da classe”. Em contrapartida, o apoio do líder soviético Nikita Khrushchev aos cientistas abriu caminho para a URSS desenvolver bombas de hidrogênio, lançar o satélite Sputnik 1 e fazer de Yuri Gagarin o primeiro ser humano no espaço.

Thabo Mbeki, que sucedeu a Nelson Mandela como presidente da África do Sul, negou de maneira infame que a AIDS fosse causada pelo vírus do HIV, resultando na perda de centenas de milhares  de vidas. O venezuelano Hugo Chávez pensou que poderia dirigir a empresa petrolífera estatal PDVSA sem os seus profissionais mais capazes, despedindo 18.000 funcionários e efetivamente destruindo a empresa que tinha sido responsável por grande parte do crescimento econômico do país.

A complicada interação entre conhecimentos especializados, políticas e política decorre, em parte, do fato de os especialistas possuírem competências valiosas que não podem ser utilizadas sem o seu consentimento. Isto lhes dá o poder de se absterem de projetos cujos objetivos não endossam. Por exemplo, o esforço para derrotar a Alemanha nazista para transformar o átomo em arma recebeu apoio quase unânime dos cientistas, em contraste com a decisão de lançar bombas nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki, ou de desenvolver a bomba de hidrogênio significativamente mais destrutiva sem um perigo claro e presente.

Embora peritos possam fornecer orientações úteis relativamente a decisões políticas difíceis, o seu papel pode ser altamente controverso. A contenção da propagação sobre o COVID-19 exigiu um bloqueio econômico temporário, mas imensamente dispendioso. O combate às alterações climáticas exige uma mudança igualmente perturbadora e dispendiosa dos combustíveis fósseis. Estas decisões envolvem compensações difíceis, incertas e inerentemente políticas. Comparar as taxas de infecção por COVID-19 em relação à potencial perda de dias letivos, por exemplo, não é apenas uma questão técnica; é uma escolha social entre duas prioridades conflitantes.

Os especialistas desempenham um papel vital na compreensão da natureza dessas compensações. Mas sua inclinação natural para formar opiniões sobre o melhor curso de ação leva-os muitas vezes para além da sua área de especialização e para o domínio da tomada de decisões políticas. Os epidemiologistas, por exemplo, podem explicar as consequências para a saúde da reabertura de escolas durante uma pandemia. Mas as suas percepções sobre como o fechamento das escolas afeta os resultados educativos dos alunos ou como a sociedade deveria valorizar esses objetivos contraditórios são limitadas.

É crucial que a maioria dos cientistas e especialistas não seja motivada por dinheiro. Em vez disso, obtêm satisfação com o próprio processo de descoberta e com o reconhecimento social que recebem. O sucesso da prestigiada unidade de inteligência 8200 das Forças de Defesa de Israel, por exemplo, pode ser parcialmente atribuído à elevada consideração que seus membros e veteranos têm, o que torna mais fácil atrair e reter os melhores talentos.

Independentemente das tendências políticas, uma sociedade que não reconhece o valor dos seus especialistas perde seu conhecimento e reduz o número e a qualidade dos futuros especialistas. Da mesma forma, uma comunidade científica que confunda a diferença entre conhecimento e tomada de decisões corre o risco de perder a confiança da sociedade. Embora a promoção de uma relação positiva entre ciência, políticas e política seja sem dúvida um desafio, os benefícios potenciais são enormes.

Tradução de Anna Maria Dalle Luche, Brazil

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